Já pensou em aplicar literatura clássica na sua mesa de RPG?
Eu estava perdido pelos estudos de narração até que cai em uma matéria da BBC maravilhosa intitulada “As seis tramas que são a base de (quase) todas as histórias já contadas” e na mesma hora achei que era balela, mas entrei para entender melhor.
Acabou que era um super insight para narrar. E vou compartilhar com você, blz?
Em resumo: Houve um estudo onde pegaram alguns livros de literatura clássica, aplicaram a modelagem estatística que é usada em marketing para saber como estão as redes sociais e aplicaram diretamente a textos de literatura clássica.

Daí nasceu algo espetacular conceitualmente: as Seis Principais Estruturas de Trama Clássicas, que são um resultado de pura analise estatística.
Mas você deve estar se perguntando como vamos fazer para aplicar na sua mesa de RPG? Vamos a elas.
Como aplicar na sua mesa de RPG?
Trama 1: Ascensão
Nesse modelo, a narrativa acontece a partir de um marco negativo. Por exemplo no inicio da aventura (preferencialmente trágico), os personagens podem ter perdido um recurso ou algum poder único e especial.
A partir desse momento o grupo de jogadores gozará de uma sensação de progressão intensa até um ápice narrativo onde reconquistarão o que lhes é de direito ou obterão grandes fortunas.
Aqui vale destacar que “fortuna” na literatura não são peças de ouro necessariamente (risos), pode ser a boa fé de um importante NPC, uma mudança no cenário geral impactada pelo grupo ou aquela forma de redenção paladinica frente ao seu deus.
A progressão desse modelo de trama tem como premissa que haverá uma evolução de recompensas ou de sentimento de sucesso nesse modelo:

Esse modelo tende a gerar jogadores acostumados com recompensas, por isso você tem que dosar essa progressão, porque a ideia é ela ser constante e evolutiva. Não adianta dar o artefato mais poderoso do mundo no momento zero que não surtirá o efeito.
A grande mecânica por trás desse modelo é o começo da história. Ele será em meio a algo MUITO negativo.
Trama 2: Declínio
Declínio de bom a mau, uma tragédia ou uma grande virada que levou a um contexto perturbador. Muito comum em cenários cyberpunk, pós apocalípticos ou terror psicológico.
Aqui, a história em algum momento, declinou. E os jogadores estão inseridos ou no momento de declínio ou no fundo do poço do mundo.
A ideia é a sobrevivência frente ao destino que não pode ser evitado, mas desde um contexto simples como um castelo sendo invadido por um exercito enorme ou um colapso político-ideológico do mundo.
O mais difícil para mim desse modelo é não criar uma trama chata e frustrante. As recompensas terão que estar nas pequenas ações, nas mínimas superações e nos contextos onde o impossível foi evitado mas não havia uma saída feliz, só o possível.

Trama 3: Icarus
Ascensão e depois declínio da sorte. Icarus é um personagem mitológico que construiu asas de cera para voar até o sol. Mesmo sem conhecer a história é fácil deduzir o que aconteceu.

Nesse modelo de narrativa, os jogadores recebem uma grande e poderosa dádiva. Pode ser um artefato, um poder político ou uma informação extremamente preciosa. A questão é que essa dádiva se transforma em um evento catastrófico.
Pode ser que aquele segredo do vampiro milenar vai te custar ser caçado até os confins do mundo. Ou aquela espada mágica de matar deuses tem sua própria agenda de destruição, não a que os jogadores pretendiam.
O ponto central desse modelo de narrativa é transformar a dádiva em catástrofe. Os jogadores terão que correr atrás do elemento que se tornou antagônico ao que eles mesmo conquistaram. Em resumo, das consequências do bem que eles causaram.

Trama 4: Oedipus
Oedipus (ou Édipo em português) foi um Rei mítico da cidade de Tebas. A vida dele é marcada por tragédias e ascensões. Ele acidentalmente cumpriu a profecia que acabaria matando seu pai e acabou se casando com sua mãe, trazendo assim desastre para sua cidade e família.

Esse talvez seja um dos modelos mais difíceis de se construir em narrativas curtas. A narração acontecerá com um declínio, seguido de uma poderosa ascensão e declínio de novo.
Essa narrativa tem para mim como maior dificuldade a construção das viradas de história entre declínio e o novo declínio que virá depois. Nela é necessário que existam pilares de história que estejam conectados e que sejam uma espécie de ondas no lago um do outro.
Na história de Édipo, o ápice acontece quando ele desvenda o enigma da esfinge, apostando tudo e criando o clímax da narrativa central. Mas essa clímax não é sustentado pelas consequenciais das informações e decisões do personagem, se transformando em uma tragédia.
Narrativas de distopia podem ter esse modelo, principalmente quando as decisões do personagem em salvar aquele membro do grupo leva a fuga do “grande mau”. Séries como The Expanse e The Altered Carbon exploram esse ciclo de forma consistente.

Trama 5: Cinderela
O conto que NÃO é da Disney, foi um conto reescrito por vários autores e diferentes interpretações da mesma jornada. Passou por Charles Perrault na França em 1697, os irmão Grimm (ídolos!) que fizeram também um versão e até o Filme Um Linda Mulher com Julia Roberts.
Por isso Cinderela é uma narrativa que está perdida em meio ao tempo e envolta em várias origens diferentes. Em um googlada marota não consegui achar a origem definitiva da história inclusive.
O que me leva a uma reflexão ainda mais profunda. Esse é um modelo de história presente ao longo da literatura desde sempre.
A personagem começa em fortuna, até que seu pai morre e sua madrasta assume todos os bens, a deixando sem nada e assim temos a deixa para que a narrativa comece. Existe uma progressão, até que ela receba a dádiva do vestido para ir ao baile, mas tudo isso só será possível se ela voltar antes da meia noite.

O anticlímax acontece quando ela foge do baile deixando o sapato para trás. O clímax se restabelece quando o príncipe a reencontra.
Essa narrativa em RPG precisa ser adaptada para que os jogadores tenham o protagonismo da construção do clímax, senão a história ficará vazia e sem engajamento. Pense em como seus jogadores poderão ter seu anticlímax construido para usar essa sacada da literatura clássica na sua mesa de RPG.
Algumas ideias:
- Um dos jogadores falou algo fora de contexto e gerou um conflito político, mas que prova uma articulação superável,
- O grupo derrotou algum nobre que estava disfarçado de plebeu e tem que provar que ele na verdade era um traidor para os jogadores não irem presos,
- Um dos jogadores encontra um tesouro que está amaldiçoado por algo insuperável e coloca todas as vidas de uma região em risco até que a maldição seja quebrada.

Trama 6: Homem no buraco
Aqui é também conhecido como a jornada do herói. É o momento que o Homem Aranha perde os poderes e até recuperar e salvar o mundo. O momento que o Batman não consegue resolver uma pista até que resolva. É o momento que o grupo de heróis se separa até o reencontro.
Na verdade esse modelo é o mais simples. Por ser o mais comum, por isso existem tantos insights possíveis que é muito claro para que qualquer leitor entenda o que esse modelo propõe.
Muitas histórias tem vários ciclos assim dentro delas. E diversas séries de heróis (ou não tão heróis) que seguem um modelo onde todos os episódios são formados por um ciclo completo de queda e redenção.

O cara por trás da ideia: Kurt Vonnegut
Na matéria original da BCC cita um tal de Kurt Vonnegut. Eu fiquei intrigado com a ideia dele ter criado a teoria por trás dessa matéria.
Por isso fui buscar e pesquisar um pouco para entender essa pesquisa incrível e achei um vídeo do TED a respeito dele.
Vale a pena conferir até o fim, mesmo o começo parecendo meio doido (risos)!
Conclusão
Essa definitivamente foi um postagem gigante! Espero que tenha curtido. Nunca imaginei isso, mas me vi narrando vários desses modelos ao longo dos anos.
Criamos a categoria RPG High Level para artigos que discutem temas mais pesados ligados ao RPG. Você já deu uma conferida nela?
Para mim foi extremamente incrível poder me aprofundar nesse assunto. Como foi a experiência de leitura desse post para você? Comente como foi aplicar literatura clássica na sua mesa de RPG. Mesmo sem saber que você era clássico.